Deliciem-se com este texto do "Escritor do Mês" de novembro:
Minha veia
Ah, quão empolgante é saber na minha veia correr
valor que me ultrapasse. Algo que tilinta dentro de mim por natureza, ou pelo
lustro que lhe dou. Parece perseguir-me desde que memória tenho, como o raio do
mesmo Sol que todas as manhãs me desperta para a vida. Preenche-me,
reconforta-me, atiça-me a viver.
Por vezes, há dias em que sou capaz de considerar
infortuna esta minha condição – aqueles em que a sua chave encaixa quando nada
mais o faz, e eu não podia deixar de desejar que o não fizesse, que se tornasse
de súbito torta e enferrujada e não rodasse novamente na fechadura. Noutros, é
motivo para ponderação numa melancolia asfixiante, algo para mascar enquanto o
tempo me masca a mim, e o silêncio fica perturbado no papel, já que conquistou
o resto – incluindo a mente, julgo por vezes, enquanto masco mecanicamente.
Outros dias evocam dela apenas o sonho, porventura graças à infantilidade que
vive, colorida e elétrica, nos meus sentidos, porventura por um desejo de uma
qualquer melodia surreal, que me enterneça enquanto observo e me forço a
espantar com a realidade. Há ainda aqueles em que proliferam nela e a partir
dela os encantos do coração, e ela nada mais é do que a droga que me faz ainda
mais dependente deles, seja isso por meu desejo, ou apesar de meu receio, mas
acontecendo sempre, e sempre me engolindo e inebriando para tudo o resto que a
eles se evada. Por fim são também meus e seus conhecidos os dias em que o vento
sopra em torno da minha cabeça, e a sua leveza apenas me faz querer voar para
infinitos céus, e inspirar o seu ar puro, pois pura inspiração ela me dá – e
então que lá em cima vejo não me importa, desde que chegue para apaziguar o
burburinho das ondas que batem contra os rochedos de minha mente, e se despeje
porventura o mar para qualquer lado onde outros nele possam navegar e se por
ele enamorar.
Este é, pois, por necessidade do ondular -
oscilante entre calmaria suave e embate incessante - dos termos que aqui se
montam, um dia dos últimos. Um dia em que me particularmente cativa a ideia de
dias assim me cativarem deste modo. Cativa-me o quão cativo sou disto que me
corre nas veias. Serei eu para além disso? Ou resumir-me-ei a isso mesmo? Resta
a pergunta que coloca o todo pela parte, e relativiza a integridade do primeiro
pela segunda. Pois que isto sou eu, e isto mais vital me é do que o sangue que
também me percorre, ou serão então os dois o mesmo?
Se me chamo apaixonado, sem razão não há de ser, e
nem há de tal razão ser tão superficial como se suporia – é porque a paixão
floresce em mim, e é a única coisa que me faz florescer, pois ela guia o meu
mundo, e claro está, me apaixona. No entanto, quanta paixão será minha mesma ou
ter-me-á sido imposta por qualquer outra coisa que não a minha espontaneidade
pessoal? Poderia optar por crer na autonomia do meu ser, mas crer, para mim,
sempre foi correr vendado sobre uma magra tábua que liga falésias irmãs, e por
isso mesmo nunca vejo paz de alma nesse paradigma. Surge então isto que sinto
dentro de mim, que senti desde a mais tenra das idades, e que me rege os dias
como a outras pessoas regeriam as preocupações profissionais ou os afazeres
quotidianos. Isto não pode ser senão natural do meu próprio mundo, aquele que
por nada nem ninguém mais terá alguma vez sido tocado, com certeza!
Por isso me empolgo com essa minha condição, por
muito que marejem as minhas reflexões nela entre o dia e a noite, é de igual
modo indiscutível o alento que ela me dá, a esperança e o desejo por mais – é a
fonte de toda a minha curiosidade e expectativa, pois que mais há de curioso no
mundo do que o nosso próprio ser, e de onde mais expectativa se pode conjurar
do que de nós próprios e do nosso caminho?
Meu engenho, minha arte, minha verdadeira paixão,
minha queda para pastorear pacatamente as palavras no papel, peço-te perdão se
alguma vez te esquecer o mérito que na minha essência tens, e te fico
eternamente agradecido por nunca me teres esquecido a mim reconhecimento pela
devoção que te tenho. Tu em mim vives, e eu sempre viverei por ti.
Ben Smith – Escalão A
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