sexta-feira, 4 de junho de 2021

Escritor do mês de maio

                         

O Grande Irmão está de olho em ti

Todos abriram os olhos. Pareceu que dormiram durante anos. Atravessaram um grande corredor branco até avistarem uma mesa redonda com três cadeiras, o número de pessoas presentes. Não se conheciam. Assim que se sentaram, ouviu-se uma voz:
“-Está ligado? Ah, desculpem” - recompôs-se - “Atenção, concorrentes, é tudo ou nada. Qual de vós é digno de um lugar no Céu? Discutam, só temos mais uma vaga, vai ter de ser decidido desta maneira. Um ateu, um agnóstico e uma religiosa, isto é que é entretenimento interessante. Têm uma hora. “
Houve um silêncio constrangedor até que um falou:
-Se soubesse que havia vida depois da morte tinha rezado uns três terços antes de vir. Grande fachada, deve ser algum programa daqueles “apanhados,” ou assim. - este era ateu - Temos de decidir o melhor entre nós? Melhor em que aspetos?
-Bem, penso que tenhamos de decidir tendo em conta os nossos atos em vida.- respondeu o Agnóstico.
A senhora que os acompanhava manteve-se em silêncio. Sentia-se bastante descontraída e aliviada, como cristã devota que foi, e que é, não haveria motivos para se preocupar. Sempre frequentou a Igreja, ensinou os seus filhos no caminho onde devem andar… uma vez até doou roupa e comida para pessoas carenciadas. Não se sentiu minimamente intimidada pelos dois homens sentados consigo. “Provavelmente, nem sabem quantos livros tem a bíblia!”- pensou.
-É assim, eu sempre tive as minhas dúvidas, mas entre o Céu e o Inferno… Até acho que mereça, fui uma boa pessoa - disse o Agnóstico, interrompendo o silêncio.
-Eu não iria por aí, qualquer um se acha boa pessoa. Parece que, afinal de contas, até é bastante cristão - respondeu-lhe o Ateu.
-Por querer entrar no Céu? Mas quem é que não quer?
-Referia-me ao considerar-se uma “boa pessoa”.
A senhora que os acompanhava manteve o silêncio até aqui, mas, ao ouvir tal ofensa, não conseguiu conter a indignação:
-Não compreendi. Está a querer dizer que os cristãos não são boa gente? Nós que cuidamos tanto dos outros, sempre olhei para o sofrimento do próximo como se fosse meu. Não admito. Condeno essa blasfémia com todas as suas letras.
-Lá que cuidam muito dos outros por acaso até é verdade, sempre a meter o nariz onde não são chamados - responde o Ateu - Mas a condenação não é algo que vocês se deviam afastar? Sei lá, eu nunca prestei muita atenção à catequese quando era criança mas, pelo que me lembro, era mais “paz e amor”.
-Desculpe mas não vou responder às suas provocações. Não lhe devo justificações, principalmente a alguém sem princípios.
- Sou capaz de pôr mais em prática os valores cristãos do que a senhora! A religiosidade faz-lhe mal.
A pequena discussão terminou aqui. Nenhum dos dois se importou com os insultos trocados, a mulher porque sabia que insultos vindos de um ser quase diabólico não poderiam ter essa importância, o Ateu porque tem o ego demasiado grande para se deixar ofender por alguém tão ignorante. No entanto, apesar de não se ter deixado levar pelas provocações do rapaz, a mulher saiu da mesa e começou a pedir perdão ao seu Criador, caso tivesse dito algo que não deveria. Tem quase a certeza de que foi o mais correta possível, mas mais vale prevenir do que remediar.
-Mas o que é que ela está a fazer assim ajoelhada?
-Na catequese não aprendeu que é esta a posição para rezar? - respondeu-lhe o Agnóstico.
-Tu tens muito a mania das intelectualidades. Oh mulher, levante-se lá, o chão está todo sujo. O menino Jesus não vai gostar de a ver com os joelhos todos cheios de pó - e olhou para baixo - (Mas… Isto são nuvens..?).
-Minha senhora, não é assim que vai para o Céu, tem de ser discutido entre nós. Aliás, está a falar com Deus mas, até que ponto, terá sido a voz d'Ele que nos falou ao início?
-Meu querido, claro que foi. Não me forces a duvidar, é óbvio. Que outro, senão Deus, nos ofereceria, de tão boa vontade o Paraíso?- respondeu a mulher para o Agnóstico, tentou ignorar novamente tudo o que o outro lhe dissera.
-Será que nos ofereceu? Permita-me discordar mas, se tiver sido Ele, criou um matadouro. A obrigar-nos a escolher entre nós… A incentivar a discussão que, como todos sabemos, leva sempre a algo mais. Ofensas, agressões… Mas o Deus que muitos falam prega o amor entre todos… tudo isto é muito incoerente - o Agnóstico não afirma nem nega a existência de algo superior, nunca soube o que poderia existir, mas sentia a existência de algo. O Ateu respondeu:
-Mas quem é que te provou que Deus era bom? E se não for?
-Partindo do princípio que estamos perante o Deus cristão, isso é impossível.
-Mas o que é que te garante que o cristão é que é real? E se não for? Andam pessoas a adorar uma mentira. Todos atrás de um Deus mau e vingativo. Sinto-me como se fosse um rato dentro de um laboratório. Como se tivesse passado a minha vida toda numa experiência para Ele se divertir.
-Está a falar de si próprio ou no geral?
-Acabei a falar em mim. Tenho dito que sou ateu mas, dada a circunstância em que vim parar, já não há como não acreditar que Ele existe. Mas, seja como for, não gosto d’Ele.
O Agnóstico manteve-se calado. O Ateu continuou o seu pensamento. A verdade é que passaram os dois a acreditar na existência de Deus, mas de formas diferentes. O Ateu, apesar de a aceitar, continua com um certo ceticismo. Não lhe sai da cabeça o quão sádico um Ser tem de ser para se deliciar com um Mundo quase apocalíptico. Começou a nascer-lhe um ódio ao pensar que todo o mal existente poderia ter sido evitado, não fosse talvez uma forma de prazer para Deus.
A mulher voltou a sentar-se na mesa e olhou para os dois homens sentados consigo. Não proferiu uma palavra. Custa-lhe admitir, até mesmo para si mesma, que o Ateu possa ter a sua razão.
Com tudo isto, tinham acabado por deixar a discussão inicial de lado. O Agnóstico, depois de um grande silêncio, disse:
- Penso que todos concordamos que, de entre os três, quem gostaria mais de ir para o Céu seria a senhora. Eu não quero. - os pequenos discursos do Ateu sortiram-lhe algum efeito.
A mulher assentiu com a cabeça.
Nisto, o Ateu levantou-se e começou a caminhar no sentido contrário ao que tinha chegado. O Agnóstico seguiu-lhe o rasto.
- Vou consigo- disse em confidência - será que chegaremos a algum lugar?
- Se entrámos, temos de sair.
- Nós nem sabemos onde vamos parar.
- Aqui é que eu não fico nem mais um segundo.
- Acha que vamos para o Inferno?
- Se for, que seja!- olhou para o Agnóstico - agora é que me apercebi que não chegámos a saber os nossos nomes! - preparava-se para se apresentar mas notou que não se lembrava do seu próprio nome nem da pessoa que tinha sido. Talvez não tenha sido nada.
Foram andando mas, como seria de esperar, não foram muito longe. Estiveram constantemente a ser vigiados, não haveria por onde fugir. Na estação de comando estavam dois vultos enormes que observavam tudo através dos monitores. Virou-se um:
- Devo dizer-lhe que há muito tempo que não tínhamos concorrentes que dessem tanto trabalho! Aqueles dois daqui a nada têm de ser trazidos a reboque. O que é que lhes deu na cabeça? Não podem voltar para onde vieram, isso seria contra as leis da natureza.
- Sim, tens razão. Depois tratamos disso. Esta senhora é a escolhida então? - parou de falar durante uns minutos, pareceu bastante pensativo - Afinal já não me apetece receber ninguém. Esta semana morreu muita gente, não estava a fazer conta… Não vai haver lugar para ela.
- Mas, Senhor, foi o combinado...
- Eu sei... mas o combinado, “descombina-se”. Não posso receber mais ninguém, já te disse. Veio muita gente de uma vez só.
- Então mas... se ela não tem espaço no Céu, vai para onde?
- Estava a pensar que pudesse ficar contigo! Ela e os outros dois.
- Eles não fizeram nada que mereça ser castigado desta maneira.
- Faz o que te digo! Se não há espaço num lado, têm de ir para o outro. Não faças um drama! Não é nada que ainda não tivéssemos feito.



 


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